Juliana Ramos
2 min readMar 27, 2020

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ontem li num livro sobre um homem de quem nunca tinha ouvido falar, chamado george mallory. nos anos 1920, mallory botou na cabeça que queria escalar o everest, esse pico que aparentemente dispensa explicações — digo “aparentemente” porque aposto que vocês também não sabiam que ele, na verdade, era ela para os tibetanos, que chamavam a montanha mais alta do mundo de chomolungma, algo como “a deusa mãe” ou “a mãe das montanhas” (um nome muito mais significativo do que o do cartógrafo do império britânico geoge everest, que mapeou a índia). george mallory, ao ser perguntado por que gostaria de escalar justo esse pico quando ninguém no mundo ainda tinha feito isso, respondeu: “porque ele está lá”. qualquer um que ame profundamente alguma coisa pode usar essa resposta pra explicar algo que não tem explicação: escrevemos e lemos porque as palavras estão lá, e isso é tudo. são relacionamentos profundos que se dão na solidão: a leitura da montanha, a escrita de uma trilha; a leitura de um livro, a escrita de um poema. não se explica o gesto de querer estar perto da deusa ou da mãe ou do coração das coisas. pois bem, george mallory e seu amigo andrew irvine partiram em expedição em 1923, mas nunca mais voltaram. o corpo de mallory foi encontrado em 1999, 75 anos depois da partida. no meio montanhista, não existe um consenso sobre se mallory e seu amigo chegaram ou não ao pico mais alto do mundo. se eles de fato chegaram lá, terão antecedido em impressionantes 30 anos os primeiros que comprovadamente o fizeram. talvez, ao partir, eles buscassem glória ou reconhecimento — como aqueles que escrevem pra ganhar prêmios ou sair nos jornais. mas eu realmente acho que só o reconhecimento externo não é o bastante pra explicar uma empreitada dessas. é preciso ter um motor interno que funcione muito bem, que seja movido a devoção e amor pra poder suportar o medo, o desconhecido, a solidão da montanha (ou da folha em branco, que é algo bem menos fatal, é claro).

nada é capaz é descrever a sensação de chegar a um pico com suas próprias pernas, ou de acessar um lugar recôndito pelas linhas escritas à mão ou no computador. nestes dias de confinamento, fico aqui exercitando a segunda trilha e sonhando com a primeira, com a certeza de que chamar as coisas pelo nome certo (chomolungma, e não everest) também significa chegar a algum lugar.

[o livro de que falo é o incrível “a história do caminhar”, da rebecca solnit]

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Juliana Ramos

Leio, escrevo, traduzo, reviso. Sou autora de “No coração fosco da cidade” (Impressões de Minas, 2018).