Dois poemas de Renée Vivien

Juliana Ramos
4 min readJul 17, 2020
Renée Vivien (em pé) e Nathalie Clifford Barney (sentada) em foto de Otto Studio, Paris, cerca de 1900
Renée Vivien (em pé) e Nathalie Clifford Barney em foto de Otto Studio, Paris, cerca de 1900

[atualizado em 26 de novembro de 2020]

Renée Vivien nasceu em uma família abastada em Paddington (Inglaterra), em 1877, e estabeleceu-se em Paris no final dos anos 1890. Sua condição de herdeira lhe possibilitou dedicar-se exclusivamente à poesia, da tradução à criação. Lançou seu primeiro livro de poemas, Études et préludes, em 1901, e a partir daí publicou intensamente até sua morte precoce em 1909, aos 32 anos. Escreveu poemas, narrativas curtas, poemas em prosa e um romance, todos em francês. Além disso, também traduziu para o francês a obra de Safo (Sapho, 1903) e de outras poetas gregas (Les Kitharèdes, 1904), e essa é uma chave importante para pensarmos suas opções estéticas e políticas.

A poesia lírica de Vivien explora sobretudo formas e metros já consagrados na tradição francesa, como os sonetos e os dísticos em alexandrinos. No nível temático, sua obra versa sobre temas também clássicos, como a natureza, a passagem do tempo, a morte e principalmente o amor. No entanto — e aqui chegamos a uma questão central de sua poética — , o amor cantado por Vivien não é o da norma heterossexual, mas sim o amor lésbico. Assim, ainda que seus poemas possam ser vistos como convencionais em nível formal, eles não o são em nível temático.

É claro que a homossexualidade não era exatamente uma novidade na poesia. Além da própria Safo, o tema já aparecera, por exemplo, em poetas temporalmente mais próximos de Vivien, como Beaudelaire (de quem se diz que ela era leitora). Ainda assim, na lírica francesa moderna, Renée Vivien e as poetas de seu círculo — o grupo de Natalie Clifford Barney, com quem Vivien manteve uma conturbada relação — talvez tenham sido as primeiras a tratar do tema a partir do olhar de quem o experiencia, um olhar que não é fetichizante ou repreensivo.

Nesta pequena seleção, traduzo dois poemas, ambos publicados pela primeira vez em Études et préludes: “Sous un ciel ambigu” e “Les yeux gris”. Os textos de partida que considerei, no entanto, constam na antologia póstuma Poèmes, de 1927, que apresenta diversos poemas revistos pela autora.

Sob um céu indistinto

Sob um céu indistinto, a sutil flor do acanto
Emaranha em seu verde a oliveira fremente,
E qual sonho perverso, à sombra florescente,
As amantes se beijam tomadas de encanto.

As madeixas trigueiras de outono e amaranto
E as claras madeixas d’um ouro dormente
Confundem suas cores. Os olhos luzentes
Revelam um prazer intenso e um espanto.

O crepúsculo rosa aprontou sua insídia.
Os desejos tardios temem a perfídia
E a risada insolente da aurora tão nua.

Abriu-se o sonífero lótus do arrebol.
Com sua insubmissa virgindade, a lua
Preferiu a ruína ao estupro do sol.

Sous un ciel ambigu

Sous un ciel ambigu, l’olivier et l’acanthe
Mêlent subtilement leurs frissons bleus et verts,
Et dans l’ombre fleurit, comme un songe pervers,
L’harmonieux baiser de l’amante à l’amante.

Les cheveux aux bruns roux d’automne et d’amarante
Et les pâles cheveux plus blonds que les hivers
Confondent leurs reflets. Sur les yeux entr’ouverts
Passe une joie aiguë ainsi qu’une épouvante.

Le crépuscule rose a baigné l’horizon.
Les désirs attardés craignent la trahison
Et le rire sournois de l’aurore importune.

Les doigts ont effeuillé les lotos du sommeil,
Et la virginité farouche de la lune
A préféré la mort au viol du soleil.

Os olhos cinzentos

O charme dos teus olhos sem cores nem luz
Me toma estranhamente; tudo entristece.
Perdido na órbita que nada reluz,
Teu olhar, entreaberto, à sombra emudece.

Indago longamente tuas frias pupilas,
Que contêm o vazio da noite, do cismar,
Das tumbas: é onde o limbo eterno sibila,
É o infinito plangente e opaco do mar.

Nada perdura em ti, nem mesmo um sonho terno.
Tudo desvanece nos teus olhos sem gozo,
Como em um fogareiro de cinzas no inverno…
E o tempo, qual um terço, passa tedioso.

Em meio à prostração da cena que perscruto
Um alheio desdém me aparta dos viventes…
Encontrei nos teus olhos a paz e o luto
Que sorvemos se junto aos mortos jacentes.

Les yeux gris

Le charme de tes yeux sans couleur ni lumière
Me prend étrangement ; il se fait triste et tard,
Et, perdu sous le pli de ta pâle paupière,
Dans l’ombre de tes cils sommeille ton regard.

J’interroge longtemps tes stagnantes prunelles.
Elles ont le néant du soir et de l’hiver
Et des tombeaux : j’y vois les limbes éternelles,
L’infini lamentable et terne de la mer.

Rien ne survit en toi, pas même un rêve tendre.
Tout s’éteint dans tes yeux sans âme et sans reflet,
Comme dans un foyer de silence et de cendre…
Et l’heure est monotone ainsi qu’un chapelet.

Parmi l’accablement du morne paysage,
Un froid mépris me prend des vivants et des forts…
J’ai trouvé dans tes yeux la paix sinistre et sage
Et la mort qu’on respire à rêver près des morts.

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Juliana Ramos

Leio, escrevo, traduzo, reviso. Sou autora de “No coração fosco da cidade” (Impressões de Minas, 2018).